Mitologias Urbanas

O burguês que procura afadigadamente pinturas a óleo, julgando que só essas é que prestam pela antiguidade e genealogia do meio, teria neste autor uma surpresa quanto à verosimilhança das representações, desde heróis do cinema a bonecos do cinema de animação e simulacros urbanos, sujidades, grafitos, desenhos, da infância, tudo na mesma tela, «colagem» aqui e além, o risco rasurado, rostos em fotografia ou modelados a tinta e à mão. É óleo? Ao burguês contemporâneo, intoxicado por valores coleccionistas, valia a pena dizer que sim – e vê-lo a comprar, deliciado, uma têmpera, tinta de água, acrílico.

Claro que David Rosado não têm nada a ver com isso, é pintor de hoje, não da Renascença ou de alguma família florentina. Foi só para fazer o ponto dos arcaísmos que confundem a bolsa de valores com a cotação do óleo na pintura.

Rosado finge a colagem de figuras e cenas quotidianas, como que num transplante do muro publicitário para a tela. As imagens que mistura têm uma forte componente do modo de fazer, a tinta que sobra, os fundos que escorrem mas vivem de uma promiscuidade cínica ou sarcástica. Esta obra é claramente lúdica, para o nosso olhar, para o nosso ver, e para a ginástica de ordem intelectual a que os trânsitos visuais e os respectivos reconhecimentos nos obrigam. Mas isso arrasta um outro lado de pesquisa, a avaliação dos dados da representação dos cidadãos a par da configuração dos bonecos animados ou gestos parietais; e, por outro lado o deslizamento da imagem em termos de referência histórica, limite no tempo, século XX em salpicos de verdade, insinuação e mentira: a mentira q nos dá a ver o real e por isso (voltemos a Klee) o torna efectivamente visível.

Se os ratos «carnais» também povoam este mundo de contínuas ilusões, fantasias, e modelação como luxúria, isso pode estabelecer-nos um caminho analítico dicotómico, mundo de «figuras dúbias que oscilam entre a admiração e a repugnância», segundo as palavras de Hugo Dinis num texto do catálogo. Ele também nos fala, com toda a oportunidade, no que de «mais sujo e deprimente existe nas cidades».

Transportando todo este caleidoscópio para o espaço do cinema ficcional, muros assim, com quadros como estes ao longo das ruas, entre ruínas e a notória escassez de tudo, acabaríamos por antever o futuro, a arte como urgência redutora, assim mesmo, vertiginosa, colada daqui e dali assinalando Mickey Mouse, Topo Gigio, Speed Gonzalez, entre outros. Aqui também se insinua uma outra hipótese formal e de conteúdo, a decadência das cidades e velhos palácios nas sociedades ditas modernas, meio desfeitas, inúteis como em «Blade Runner», o luxo a coabitar com os lixos urbanos, matérias tóxicas, ratazanas, a peste pela voz lúcida e humaníssima de Camus.

David Rosado, de resto, começa tudo isto por uma «urgência em difamar a pintura». Hugo Dinis aflora este problema com pertinência, porque a verosimilhança das coisas e dos seres mostra uma capacidade retomável a qualquer instante, ou seja: que não é por isso ser menos ou mais que a pintura vale o nosso deleite. Agora não há tempo para devaneios, aqui estão os nossos mitos urbanos, os heróis do espectáculo e todos os alternes de luxo da civilizada Europa. O que é preciso é denunciar que estas formas têm uma vida própria, autónoma na autonomia do próprio quadro, sendo este um novo patamar para explicar os desastres principais da nossa civilização, em apodrecimento, feita de pedaços, de enormes burlas sobre o corpo e sobre o espírito.

A abundância de imagens consumíveis cada vez mais, aos nossos olhos, o horror de um mundo progressivamente sobrecarregado de desperdício, confuso, atravessado por aparências fugazes e lojas ou indústrias da cultura, do espéctaculo, tudo sobre fundos cinzentos, inúteis na sustentação da cacofonia visual, ao mesmo tempo arrogante e humilde, abrangente e restrita na demografia do sul, meninos na lama, o caldo de uma outra cultura, sem indústria nem mercado, onde a fome mata e as doenças destroem os frutos de uma fecundidade ainda legítima.

Cito, só para terminar, mais uma frase de Hugo Dinis: « A perigosidade de belas imagens pode ser devastadora para uma significação política».

Direi, por mim, que estas belas imagens ainda não estão coagidas pela indiferença e ganham no domínio da ideologia do testemunho.

Texto: Rocha de Sousa 2009-12-30